Pesquisadores estudam o mangue e descobrem diferenças dramáticas na variabilidade genética dos manguezais dos litorais Norte e Sul
por Pedro Luna
Uma das pesquisas sobre biogeografia brasileira que mais me encantaram nos últimos anos é aquela sobre a história evolutiva dos nossos mangues, investigação iniciada há 15 anos pelo biólogo Gustavo Maruyama Mori, do Instituto de Biociências da Unesp, Campus do Litoral Paulista, em São Vicente-SP.
O principal achado do grupo liderado por Mori é que os manguezais da costa Norte do Brasil são geneticamente diferentes dos manguezais do litoral Leste, Sudeste e Sul, isto apesar de todos os manguezais serem compostos pelas mesmas espécies.
A razão para tal diferenciação entre os manguezais decorreria do padrão de dispersão de suas sementes e frutos, chamadas propágulos, levados para nas direções norte ou sul ao sabor das correntes marinhas que lambem a costa brasileira.
“O mangue é formado por plantas muito particulares,” diz Gustavo. “O fato delas dispersarem suas sementes pela água não é uma coisa que costumamos ver. Outra coisa que me chamava atenção era ver que a maioria das plantas não sobrevive no ambiente de mangue”. Em outras palavras, o manguezal é um ecossistema onde quase nenhuma planta terrestre tolerara viver… à exceção do mangue.
ECOSSISTEMA NEGLIGENCIADO
Os manguezais brasileiros se espalham por milhares de quilômetros, desde o Amapá até Santa Catarina. São ecossistemas que funcionam como uma interface entre o mar e os rios que neles deságuam. Regados diariamente pelos nutrientes trazidos pela água doce, os manguezais são ambientes de extrema importância como berçário de peixes marinhos de valor comercial, como o robalo, e de crustáceos como camarões e caranguejos.
Os manguezais estão entre os ecossistemas mais negligenciados em todo o mundo. “Entre 1983 e 1997, praticamente metade (46%) da área original ocupada pelos manguezais no litoral brasileiro desapareceu, aterrada pelas atividades humanas, como a especulação imobiliária”, afirma Gustavo Mori.
“A destruição dos manguezais é uma perda irreparável, com sérias consequências para a atividade pesqueira e para as populações locais que dependem do mangue para o seu sustento”.
A despeito da perda de metade dos nossos manguezais originais, apesar de tamanha devastação, o Brasil ainda é o segundo país em extensão de mangues, com 14 mil km² de áreas de mangue distribuídas ao longo do nosso litoral. Ficamos atrás apenas da Indonésia (23,1 mil km²), e bem à frente do terceiro colocado, a Malásia, com 4,7 mil km².
Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), havia em 2018 um total de 120 unidades de conservação com manguezais em seu interior, abrangendo uma área de 12.114 km², representando 87% do ecossistema de mangues em todo o Brasil.
MANGUE: BRANCO, PRETO E VERMELHO
De acordo com o Atlas dos Manguezais do Brasil, o termo mangue é empregado para designar um grupo diverso de árvores tropicais que, embora pertençam a famílias botânicas sem relação taxonômica próxima entre si, compartilham características fisiológicas similares. Já o termo manguezal ou mangal é usado para descrever comunidades florestais ou o ecossistema manguezal.
“Existem dois gêneros de árvores que ocorrem nos manguezais de todo o mundo: Avicennia e Rhizophora”, explica Gustavo. “Apesar de pertencerem a famílias e ordens completamente diferentes, ou seja, são evolutivamente muito distantes, não possuindo ancestrais comuns próximos, Avicennia e Rhizophora se adaptaram às condições específicas dos manguezais.”
Há dezenas de espécies de Avicennia e Rhizophora nos mangues do mundo. No Brasil, só ocorrem cinco. As duas espécies de Avicennia são o mangue-branco ou sereíba (A. germinans), e o mangue-preto (A. schaueriana) ou siriúba, que em tupi-guarani significa literalmente “árvore do siri”. Já o gênero Rhizophora ocorre em nosso país em três espécies (R. mangle, R. racemosa e R. harrisonii), coletivamente conhecidas como mangue-vermelho, mangue-sapateiro ou candapaúba (ou ainda mapareíba, e guarapaíba).
“Rhizophora é o gênero símbolo do mangue. Por ser a mais resistente à influência da maré, muitas vezes cresce à beira d’água, formando o cartão-postal mais visível do mangue para os banhistas e para os turistas que seguem ao litoral e, para chegar nas praias, precisam cruzar áreas de mangue,” explica Mori.
SOLUÇÕES ADAPTATIVAS
Avicennia e Rhizophora desenvolveram de forma independente soluções adaptativas engenhosas e semelhantes. Elas suportam viver em ambientes alagados tanto pela água doce dos rios quanto pela água salgada das marés. Avicennia e Rhizophora germinam e crescem fincando suas raízes no lodo do manguezal, um substrato movediço que, embora rico em nutrientes trazidos pelos rios e pela maré, é quase completamente anaeróbico, ou seja, desprovido de oxigênio.
Como adaptação à pobreza de oxigênio do lodo, Avicennia e Rhizophora desenvolveram raízes aéreas, que permitem lidar com a falta de oxigênio e sustentar a árvore mesmo quando a maré sobe e o solo encharca. Avicennia possui raízes aéreas pequenas, de até uns 15 centímetros, que conseguem respirar. Já as raízes de Rhizophora podem se estender em arcos que chegam a vários metros de comprimento.
Devido às marés, o lodo dos manguezais é extremamente salino. E a presença de sal no solo é fator inibidor para a germinação de quase todas as plantas terrestres — menos as árvores de mangue. Estas possuem adaptações que permitem às suas raízes absorver a água salgada e dela extrair o sal marinho, expelido através da superfície de suas folhas. O vento e chuva executam o resto do serviço, soprando ou lavando a superfície das folhas, varrendo todo o sal acumulado.
DISPERSÃO DOS PROPÁGULOS
Para dispersar suas sementes, plantas em geral recorrem a diversas estratégias. As sementes podem simplesmente cair no chão e germinar ali mesmo. Elas também podem ser levadas pelo vento, ou podem ainda ser dispersadas nas fezes dos animais que se alimentam dos frutos. Com o mangue não acontece nada disto. As sementes são dispersas na água do mar. Essas sementes e frutos, chamadas em conjunto de propágulos, são bastante resistentes à ação corrosiva da água do mar. Uma vez no oceano, podem flutuar por várias semanas ou meses, conservando o seu poder germinativo até ir dar numa área onde poderão germinar e crescer. É por causa desta estratégia de dispersão que os mangues do Norte do Brasil diferem geneticamente dos mangues do Sudeste e do Sul.
Eis o motivo: a Corrente Sul Equatorial é uma corrente marinha que atravessa o oceano Atlântico desde a costa africana até o litoral do Nordeste, onde suas águas bifurcam formando duas novas correntes. Ao Norte, a Corrente do Norte do Brasil banha os litorais do Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão, Pará e Amapá. Já a Corrente do Brasil desce pelo litoral do Nordeste, lambendo as costas das regiões Sudeste e Sul do País.
É a direção oposta destas duas correntes que faz com que as populações de árvores de mangue que crescem no Norte e no Sul do Brasil não troquem genes entre si. Decorre daí que, ao longo de milhares de anos, as espécies do mangue foram tendo características selecionadas de maneira que as duas populações se adaptassem às condições das diferentes regiões do litoral brasileiro.
A equipe da qual Gustavo faz parte descobriu que os mangues do Norte do Brasil são adaptados à maior insolação equatorial, enquanto os manguezais do Sul podem crescer num regime de menos dias de sol ao longo do ano.
No exemplo de Avicennia, as espécies estudadas que crescem nos manguezais do delta do rio Amazonas são mais adaptadas à maior insolação e ao clima mais quente. Por outro lado, Avicennia que cresce nos manguezais na região de Florianópolis estão geneticamente adaptados a sobreviver bem em ambientes não tão quentes, com menor luminosidade, e baixas temperaturas durante o inverno.
SAIBA MAIS!
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