Desde a décima edição de Systema Naturae (1758), de Carlos Lineu, achava-se que havia uma única espécie do também conhecido como tamanduá-pigmeu, mas pesquisa descreve outras seis
por Pedro Luna
Esta é uma história que começa em 1758, quando da publicação da décima edição do Systema Naturae, a obra magna do naturalista sueco Carlos Lineu (Carl Nilsson Linnaeus, 1707-1778), o pai da taxonomia.
Em meio às cerca de 4,2 mil espécies animais que Lineu descreveu naquela edição (além de 9 mil plantas), havia um tamanduá-pigmeu de rosto curto que recebeu o nome científico de Cyclopes didactyla. Era o tamanduaí, como seria conhecido popularmente no Brasil, um bichinho encantador, porém esquivo, de hábitos noturnos, e que vive na copa das árvores, onde se alimenta exclusivamente de formigas.
O animal é encontrado em florestas tropicais do norte da América do Sul e da América Central e também nas poucas manchas que restam da Mata Atlântica nordestina. Todas as populações de tamanduaí são praticamente idênticas, daí a razão pela qual se acreditou por 259 anos que se tratava de uma única espécie. Agora se sabe que são sete. Pelo menos.
A descrição de seis novas espécies de tamanduaí é resultado do trabalho da veterinária Flávia Miranda, da Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia. Miranda faz parte da equipe de taxonomistas, zoólogos e geneticistas que estudaram a biologia e a ecologia das novas espécies de tamanduaís, e sequenciaram o DNA nuclear e o DNA mitocondrial de 287 espécimes.
Desde a descrição pioneira de Cyclopes didactyla foram descobertas, no século 19 e início do 20, outras seis populações de tamanduaís com distribuições espalhadas desde o sul do México até o norte da Bolívia e, na direção leste, passando pela Amazônia, Pará e Maranhão, até o Nordeste brasileiro, em Alagoas.
Todos os espécimes coletados eram aparentemente idênticos e não havia diferenciações morfológicas suficientes para sustentar a descrição de espécies distintas. Daí que todas foram consideradas subespécies de C. didactyla, a única espécie da família Cyclopedidae.
Este era o estado do conhecimento até 2005. Foi quando entrou em cena a veterinária Flávia Miranda. Ela trabalha com a ordem Xenarthra há mais de 20 anos e dirige o Projeto Tamanduá, voltado à conservação de preguiças, tamanduás e tatus.
Decidida a fazer o reconhecimento das populações de tamanduaís no Nordeste e na Amazônia brasileira, Miranda realizou nos dois anos seguintes trabalhos de campo no Pará, no Maranhão e também nas franjas do rio São Francisco, em Alagoas. Quanto mais avistamentos e coletas ela fazia, maior era a sua convicção que, talvez, se tratasse de espécies distintas.
“Comecei a perceber as diferenças de coloração. Os bichos do Maranhão eram completamente diferentes daqueles da região do Xingu. Seriam da mesma espécie? Será que a aparente semelhança morfológica dos indivíduos das diversas populações de tamanduaís não esconderia diferenças profundas ao nível molecular?”, disse.
Miranda passou os últimos 10 anos organizando e empreendendo expedições a todas as regiões brasileiras onde havia relatos de tamanduaís. Foram 10 expedições: a Santa Isabel do rio Negro no Amazonas, a Oriximiná no Pará, ao delta do Parnaíba no Piauí, ao Maranhão, ao Amapá e ao Suriname, entre outros locais.
Houve ocasiões em que ela ficou até 60 dias embrenhada na mata. “Sem a ajuda da população local, jamais teria conseguido achar todos os espécimes que encontrei”, disse.
“O trabalho de localização dos animais na mata foi sempre muito difícil. Imagine um bichinho de apenas 250 gramas, que vive na copa de grandes árvores em zonas alagadas como igarapés, igapós e mangues, que quase não desce ao solo, não vocaliza em momento algum e só é ativo à noite. Demorei dois anos de campo extensivo até conseguir fazer o primeiro avistamento”, disse.
Miranda realizou ao todo 17 coletas no Brasil e Suriname. Uma vez feita a captura, os espécimes eram medidos, fotografados e amostras de sangue coletadas para estudo molecular. Foram registrados o sexo e a localização geográfica. A idade foi determinada a partir da massa corporal, da densidade e do tamanho do pelo. Paralelamente, foram coletados dados morfológicos e morfométricos de 20 coleções de história natural em diversos países.
A análise do DNA mitocondrial e do DNA nuclear dos tamanduaís não deixou dúvidas quanto à existência de diversas espécies para o gênero Cyclopes, suportadas pelas diferenciações morfológicas, morfométricas e pela localização geográfica.
As descobertas mais surpreendentes vieram do relógio molecular, uma técnica de biologia molecular que relaciona o tempo de divergência entre duas espécies com o número de diferenças moleculares em seu DNA.
O relógio molecular revelou que a separação das diversas espécies de tamanduaís não tem nada de recente. Ao contrário, é muito antiga. Os autores estimam que o grupo Cyclopedidae dos tamanduaís divergiu do restante dos tamanduás (que deu origem ao tamanduá-bandeira e ao tamanduá-mirim) no Oligoceno inferior, há 30 milhões de anos.
A evidência molecular sugere que a primeira divergência dentro do gênero Cyclopes se deu há 10,3 milhões de anos, no Mioceno superior. Foi quando se separaram os ancestrais das linhagens encontradas no oeste do Amazonas, no Acre, na Amazônia peruana e em Rondônia.
Tal diversificação estaria ligada à alteração do curso do Amazonas, que corria no sentido leste-oeste, mas inverteu de sentido há cerca de 10 milhões de anos em função da elevação dos Andes. Nesta época se formou um imenso pantanal no oeste da Amazônia.
Há 7 milhões de anos o grande pântano desapareceu, isolando naquela região os ancestrais de duas novas espécies agora descritas, Cyclopes rufus e Cyclopes thomasi. Já essas, eventualmente, se diferenciaram há 3,4 milhões de anos, devido à formação das bacias dos rios Purus e Madeira, que formaram barreiras biogeográficas isolando as duas populações. A espécie boliviana Cyclopes catellus pode ser oriunda dos mesmos eventos.
Há cerca de 5,8 milhões de anos, ocorreu no oeste da Amazônia e no Equador a divergência da linhagem de Cyclopes ida. Há 4,6 milhões de anos, foi a vez do surgimento da linhagem de Cyclopes xinguensis, que permaneceu restrita à área do rio Xingu.
Há 3 milhões de anos, com a contínua elevação da barreira andina, deu-se a separação da linhagem mesoamericana Cyclopes dorsalis de seus parentes na América do Sul.
Já a linhagem de Cyclopes didactylus, a espécie original descrita por Lineu, que habita a margem esquerda do rio Amazonas (e a bacia do Negro), o Amapá, o Pará, o Maranhão até Alagoas (além da Venezuela e de Suriname), divergiu há cerca de 2,3 milhões de anos, com o advento das primeiras glaciações do período Pleistoceno.
Tantos milhões de anos de separação entre as espécies de tamanduaís seriam mais do que suficientes para que elas acumulassem diversas modificações. Mas não foi o que ocorreu. Ao longo de sua história evolutiva, o gênero Cyclopes se mostrou extremamente conservador, ou seja, ele vem se modificando morfologicamente muito pouco ou quase nada desde então.
“A razão para isso pode estar nos hábitos de vida destes animais, que ocupam um nicho ecológico muito especializado e similar entre as espécies, onde não enfrentam concorrentes”, disse a pesquisadora.
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