Pesquisa mostra a importância de conhecer a diversidade genética do boto cor-de-rosa da Amazônia

por Pedro Luna

Até o momento, apenas uma espécie de boto foi aceita pela ciência, mas outros grupos podem estar isolados e ameaçados de extinção

O boto cor-de-rosa do Amazonas (Inia geoffrensis), que originou a lenda do folclore brasileiro, possui uma espécie e três subespécies reconhecidas pela ciência. Em 2014, pesquisadores propuseram que uma população de botos na bacia dos rios Tocantins e Araguaia deveria ser considerada uma espécie distinta: o boto do Araguaia (Inea araguaiaensis). Mas a hipótese é contestada por um recente estudo que reuniu novos dados sobre a morfologia craniana dos botos, publicado no Journal of Mammalogy.

Para uma nova espécie ser aceita, os biólogos necessitam de mais informações dentre elas as características físicas dos animais, segundo a pesquisadora do Butantan Erika Hingst-Zaher, coautora do artigo. Os cientistas argumentam que, apenas com base nos dados de medidas dos crânios, a validade da espécie do boto do Araguaia não se sustenta.

Os cientistas já examinaram, mediram e categorizaram 46 crânios de botos depositados nas coleções de diversos museus. O boto boliviano (Inea boliviensis) e o venezuelano (I. humboldtiana) têm crânios comparativamente delicados. Os bolivianos têm focinhos compridos forrados com dentes extras, e os venezuelanos são particularmente pequenos. Mas o crânio da espécie proposta para o Araguaia é difícil de diferenciar do crânio da população amazônica.

boto cor-de-rosa no rio Negro (crédito: Lcainbinder CC BY 4.0)

Conservação da espécie

Aprimorar o conhecimento das espécies é muito importante para a conservação do boto. “Se o boto fosse uma única espécie em toda a bacia amazônica, seria menos preocupante”, diz Erika. Estima-se que haja dezenas de milhares de botos em milhares de rios dos 5 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia. “Mas se existem três espécies, ou quatro, com populações mais restritas, elas podem se encontrar ameaçadas devido à construção de barragens hidrelétricas, por exemplo, que não apenas alteram significativamente os habitats desses animais, com criam novas barreiras entre as populações”, completa.

O isolamento crescente entre os diversos grupos que compõem cada espécie acabaria reduzindo o contato e a troca gênica entre seus indivíduos, limitando o acesso às fontes de alimento rio acima ou rio abaixo, e aumentando a vulnerabilidade do gênero como um todo.

Milhões de anos de adaptação

Além de conseguir diferenciar geneticamente as diversas populações de botos amazônicos, a biologia molecular também permitiu compreender a dinâmica do isolamento e da especiação dos grupos de botos no passado. Assim, aliando dados genéticos com conhecimento geológico, paleontológico e paleoclimático, os pesquisadores conseguiram estabelecer um roteiro com hipóteses da adaptação dos botos aos rios da Amazônia.

A história começa no período Mioceno, entre 20 milhões e 10 milhões de anos atrás, quando o nível dos oceanos era consideravelmente mais elevado do que hoje e penetrava o continente sul-americano através das calhas dos rios Amazonas, Magdalena na Colômbia e Orinoco na Venezuela. Os ancestrais tanto dos botos quanto dos peixes-boi e das raias amazônicas eram animais marinhos que habitavam aquelas línguas de água salgada que adentravam o continente.

Na mesma época, o movimento contínuo das placas tectônicas acelerou a formação dos Andes. Ao longo de milhões de anos, acompanhando a elevação da cordilheira, os terrenos da Amazônia ocidental (que hoje compreendem os estados do Amazonas, Acre e Roraima, além da Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela), foram subindo, até eventualmente empoçar as águas onde viviam os ancestrais dos botos. Para sobreviver, aqueles cetáceos marinhos foram se adaptando por milhares de gerações às condições de uma vida em água doce, dando origem aos botos atuais.

Nos últimos 200 anos, foram descritas 19 espécies de botos amazônicos. A primeira delas, em 1817, foi o boto cor-de-rosa (Inia geoffrensis) do Amazonas e do rio Negro. Em 1834, foi a vez do boto boliviano (I. boliviensis) das bacias do rio Beni na Bolívia, e do Alto Madeira em Rondônia. Só no século 19 foram descritas outras 15 espécies, todas eventualmente consideradas sinônimos das duas primeiras. Em 1977, a linhagem dos botos rosados das bacias do Orinoco e do Magdalena ganhou status de espécie (I. humboldtiana).

Todas estas descrições foram feitas com base nas diferenças anatômicas dos animais, associadas aos habitats que ocupam. Mas, com a revolução da genética do século 21, a comparação dos dados moleculares foi priorizada, acabando por revelar mais semelhanças do que diferenças.

Da mesma forma que acontece com os cachorros, em que um leque anatômico oculta uma identidade canina universal, o estudo do DNA dos botos amazônicos fez as três espécies serem vistas como uma só. Assim, os botos do Amazonas (I. geoffrensis geoffrensis), do Orinoco (I. g. humboldtiana) e da Bolívia (I. g. boliviensis) passaram a ser considerados três subespécies.

Porém, o mesmo poder dos dados moleculares que uniu populações de botos antes distintas, também pode sugerir que a linhagem de botos do Araguaia acumulara ao longo de milhões de anos de isolamento diferenças genéticas suficientes para sustentar uma nova espécie – o que o trabalho de Erika e colegas sugere contestar, ou buscar novas evidências.

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