Projeto no Mato Grosso de conservação de harpias, ou gavião-real, monitora mais de 50 ninhos, uma centena de aves adultas e dezenas de filhotes

por Pedro Luna

“A harpia é a maior águia do mundo. Ela faz seus ninhos nas árvores mais altas da maior floresta tropical do planeta, a floresta amazônica”, afirma Everton Miranda. Agora imagine que você está no norte de Mato Grosso e deseja observar com seus próprios olhos o ninho de um casal de harpias com seu filhote. Aquelas aves sempre escolhem as árvores mais altas da floresta para fazer seus ninhos, de modo que fique acima do dossel da floresta, acima das copas de todas as árvores circundantes.

O ninho das harpias fica, em média, a 33 metros do chão da floresta, a altura de um edifício de 11 andares. As fêmeas são bem maiores que os machos, por pesarem em média de 6 a 9 quilos, enquanto os machos têm entre 4 e 5 quilos. Também conhecida como gavião-real, a harpia tem envergadura de asas de até 2,5 metros — e possui garras poderosas. Elas são mais compridas e mais afiadas do que as garras de um urso-pardo, um predador que pode chegar a 280 quilos.

O ninho que você deseja observar fica no alto de uma sumaúma — mas poderia ser um angelim-vermelho ou um jatobá. Todas são árvores que passam tranquilamente dos 50 metros de altura. Para observar o ninho, você escolhe um ipê-amarelo, que fica numa distância segura do casal de harpias, ave de rapina também conhecidas como gavião-real.

Até aqui foi a parte fácil da sua aventura. Agora vem a difícil: usar cordas e equipamentos para escalar o ipê. Suponha que você tenha feito um curso de escalada, e que também conte com condição física privilegiada, e coragem para enfrentar a escalada. Aqui embaixo, a floresta vive mergulhada em sombras. Você começa a subir. Pouco a pouco, vai galgando os 30 metros verticais de tronco até o ponto onde conseguirá enxergar o ninho das harpias. 

“Após muito esforço, você finalmente rompe a sombra do dossel, sendo banhado pela luz do Sol. Aí, vislumbra aquele ninho imenso com suas aves magníficas… Para mim, esta experiência encabeça a lista das melhores coisas que fiz na vida”, diz Everton. Desde 2016, ele empreendeu esta aventura dezenas e dezenas de vezes. Assim conseguiu identificar, observar e monitorar mais de 50 ninhos de harpias na região de Alta Floresta (MT), em pleno arco do desmatamento. 

“Quando cheguei aqui, as pessoas que nunca haviam visto uma harpia antes atiravam nelas para poder vê-las. Com nosso trabalho de conscientização, essa prática acabou aqui em Alta Floresta”. Mesmo sendo em área um dos maiores municípios brasileiros, Alta Floresta é um pingo no meio do mar amazônico.

(crédito: MDF/WIKIMEDIA – CC-BY-NC-ND)

AVENTURA NAS ALTURAS

Recém-formado biólogo na UFRJ, Everton Miranda tinha 24 anos quando trocou o Rio de janeiro pelo Mato Grosso, onde foi cursar o mestrado em Ecologia e Conservação na UFMT. “Meu foco era o estudo da ecologia de predadores. Mas não queria trabalhar com onças, pois o Brasil tem mais de uma dezena de pesquisadores de altíssimo nível nesses felinos. Foi quando olhei para as harpias. No Brasil só havia um grupo monitorando essas aves. É o Projeto Harpias, da pesquisadora Tânia Sanaiotti, do INPA, em Manaus. Daí pensei: acho que posso fazer uma contribuição que faça diferença no estudo destas aves de rapina”. É isto o que Everton tem feito nos últimos sete anos. na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT).

O primeiro passo do projeto era, obviamente, localizar os ninhos das harpias. A harpia é o predador de topo dos céus da Amazônia. Como qualquer predador de topo, cada casal de harpias tem a sua área de caça, que é enorme. “Logo no início do trabalho, tentei achar os ninhos a pé. Andei 40 quilômetros e achei o primeiro ninho. Se for assim tá fácil, pensei. ‘Eu dou conta de fazer 40 quilômetros por ninho… Mas não foi o que aconteceu. Andei mais 400 quilômetros e não achei nenhum outro. Foi quando percebi que precisava de ajuda”.

Everton recorreu ao auxílio das cooperativas de catadores de castanhas do Pará, os castanheiros. Ele passou a oferecer R$ 500 para quem achasse um ninho de harpias. “Aí a coisa começou a andar. No final de uma ano, já havia 6 ninhos, sendo quatro ativos, ou seja, ocupados por casais com filhote”.

(crédito: Jamile Cesar/CC BY-SA 4.0 DEED)

UM PESQUISADOR DESCOLADO

Everton é um cara bastante descolado. Ele consegue se virar a despeito da situação precária em que a ciência brasileira foi jogada a partir de 2016. Para financiar seu projeto de conservação de harpias, Everton acertou uma parceria com uma agência de viagens de aventura, a SouthWild, para vender pacotes para observação dos ninhos de harpias. 

Para colocar o negócio em pé, o pesquisador fechou igualmente parcerias com os proprietários das terras onde ficam os ninhos. Os fazendeiros passaram a receber um pagamento por cada turista em suas terras. Ao mesmo tempo, eles assumiram o compromisso de preservar toda a mata num raio de três quilômetros no torno de cada ninho. 

Por fim, Everton contratou a construção de duas torres de observação móveis. E o negócio decolou. “Começamos a receber anualmente mais de uma centena de turistas, a maioria estrangeiros. Quase todos são fotógrafos amadores. Eles pagam muito bem para poder observar as harpias. É assim que consigo os recursos para tocar o projeto de conservação. Hoje, a gente monitora pouco mais de 50 ninhos, ou quase cem harpias adultas”. 

Everton relata um de seus momentos mais empolgantes no contato com essas aves. “Certa vez, visitei um ninho que não sabia se estava ocupado com um filhote, ou se estava vazio, pois a fêmea passava um bom tempo distante do ninho. Decidi escalar aquela árvore e verificar o ninho”. 

“À medida que ia subindo, percebi numa árvore a pouca distância a mãe que me observava. Fiquei de olho nela e continuei escalando. Quando estava uns dois metros abaixo do ninho, tive um pressentimento e me virei para olhar na direção da fêmea. Ela vinha em minha direção. E teria me atacado, caso continuasse de costas para ela. Mas como no último instante virei de frente, a mamãe harpia deteve seu ataque. Ainda assim, ela chegou perto o suficiente para que eu pudesse sentir o vento quente trazido pelo bater de suas asas, e forte cheiro de carniça que a ave exalava. Sobrou apenas o tempo suficiente para verificar que havia um filhote no ninho, e descer rápido para não provocar um novo ataque.

(crédito: Eduardo Merille/CC BY-SA 2.0 DEED)

TURISMO E CONSERVAÇÃO

Foi a partir da localização de seus 50 ninhos que Everton conseguiu calcular a densidade de harpias na floresta amazônica. Ninguém havia feito isso antes. Na Amazônia, na floresta primária, há em média 4,8 ninhos a cada 10 mil hectares, ou 100 km². São cerca de nove a dez adultos a cada 100 km². É mais ou menos a mesma densidade das onças. Em áreas desmatadas, infelizmente, a densidade despenca para 1,7 ninho a cada 100 km² — ou seja, apenas duas a três harpias.

Outra descoberta importante de Everton foi aferir os níveis de desmatamento que as harpias suportam. “Os casais de harpias conseguem sustentar seus filhotes em áreas com até 30% de perda florestal. Entre 30% e 50%, os filhotes começam a passar dificuldades. A partir de 50% de perda florestal, os ninhos são abandonados. É quando a gente vê filhotes morrendo de fome”, diz Everton.

Ele também está organizando um curso para a conservação das harpias. Pretende atrair estudantes de todo o país, interessados em aprender o manejo das aves. “Montei o projeto de conservação de harpias de um jeito que ele pudesse prosseguir sem a minha presença. Em junho, vou embora”. 

Everton fez seu doutoramento na Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul. E agora foi contratado pela Universidade North-West, naquele país. “Me ofereceram um maravilhoso emprego de pesquisador. Estou indo sorrindo!”

Ele vai pesquisar o papel das áreas privadas na conservação dos biomas sul-africanos. “O modelo de conservação sul-africano é um dos mais avançados dos países em desenvolvimento. Há meio século, o governo privatizou os animais que vivem nas fazendas particulares. Foi o jeito de atrair os fazendeiros a investir na conservação. Uma vez que os proprietários da terra se tornaram donos dos bichos, eles passaram a conservá-los, e investir em turismo, safaris fotográficos, temporadas de caça, exportação de couro e carne (no caso dos avestruzes, por exemplo). 

“Em 50 anos, a quantidade de animais selvagens de grande porte na África do Sul saltou de 500 mil para 28 milhões. Hoje, 30% do território da África do Sul é de áreas de conservação privada. Os parques nacionais são 10%. A área de preservação no Brasil pode ser até maior, mas a diferença é que aqui essas áreas só existem no papel”. 

SAIBA MAIS!

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